Doença
Já contei que fui submetido a um procedimento cirúrgico em outro texto. Precisei dar adeus ao meu rim esquerdo em dezembro de 2019 por causa de uma má formação que resultou em uma infecção. Meu rim foi guerreiro, resistiu por 21 anos mesmo dando sinais de que tinha algo errado, avisando-me por meio da dor, sempre ela quem nos mostra que devemos dar atenção a algo que está passando despercebido, geralmente quando ela dá seu recado é porque o problema já está sério e precisamos estar atentos.
Quando resolvemos ou somos forçados a dar atenção às mensagens desesperadas, não as que chegam no celular, mas sim as que vem de dentro, tudo o que planejamos fazer fica para depois, algo que era tão simples de resolver, tornou-se o assunto mais urgente, pula as outras atividades da nossa vida, afinal o que é mais importante que nós mesmos?
Ao adoecer pensamos mais na vida. Deitados no leito do hospital olhando as gotas do soro caírem, vendo os funcionários entrarem e saírem do quarto, os olhares curiosos para saber o porquê de estarmos ali, ou em casa enquanto mudamos de canal sem nem ver o programa que está passando, refletimos no que estamos gastando nosso tempo e saúde, ponderamos se vale mesmo a pena todo esforço já que basta adoecer e tudo fica para depois, aquele trabalho que era extremamente urgente deixa de ser porque fomos forçados pelo nosso corpo a de-sa-ce-le-rar.
Por isso que dizem que a dor ensina a viver, eu não concordo com essa afirmação, a sensação desagradável apenas nos mostra algo anormal em nós, cabe a nós corrigirmos aquilo. A experiência de lidar com a dor é que nos ensina, porque damos uma moral a história independente se é de dor ou amor, queremos respostas para tudo e por isso dizemos que a dor ensina, ficamos marcados na memória e ao sentir novamente, somos experientes em como agir.
A doença é como o nó que sentimos na garganta quando não falamos algo que é preciso ser dito, devagarinho vai aumentando e incomodando mais até que chega ao seu ápice e explode, chamando atenção. A enfermidade causa a dor e as palavras causam, choro, raiva, ou os dois juntos. Tudo isso vira um filme que se repete na lembrança nos dias ociosos e indispostos.
Na recuperação, prometemos que vamos sair como outras pessoas, organizar o tempo para dar conta de tudo e aceitar o que não der pra fazer, ser mais gentil e observar mais ao redor quando estiver no ônibus, não ficar muito tempo no celular para dar apoio a família. Sorrir à toa na rua, dar bom dia ao motorista do ônibus, dizemos que vamos aproveitar todas as oportunidades que a vida nos dá.
Realmente, é assim nos primeiros dias, talvez seja assim durante alguns meses, mas depois de algum tempo esquecemos o que aconteceu, a vida volta para a rotina corrida, lidar com o trabalho volta a ser estressante, o ônibus volta a ser lotado e cansativo, o motorista nem parece tão simpático a ponto de receber um “bom dia”. A vida voltou ao normal e a gente volta a seguir seu fluxo, voltamos a parecer as mesmas marionetes que só descansam um pouco no final de semana, isso quando não arranjamos trabalho para ele. Não nos importamos mais com a saúde, assim como o tempo, sentimos falta quando perdemos.
Então mais uma vez, a dor volta, e se repete o mesmo processo, isso acontece repetidamente para que possamos aprender o que vale mais: Viver os dias como se nunca fossemos morrer e agir como robôs fazendo movimentos calculados e sem atenção para o que acontece no mundo, ignorando a beleza da vida e se contentando a poucos momentos livres, ou viver com a certeza que a morte está ali nos observando e que a qualquer momento pode chegar nossa vez, e que, sendo assim, temos a obrigação de aproveitar o máximo possível da vida. Se repete até que, enfim, a gente aprenda que a doença que devemos combater é a cegueira que nos impede de ver a efemeridade da vida.
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